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Ex-feirante na Bahia, pesquisador que estuda novas vacinas da Covid foi aluno do Campus da Uneb em Sr. do Bonfim

Aos sete, Guga já trabalhava na roça da família, plantando feijão e milho e, depois, vendendo os alimentos na feira em Tucano, interior da Bahia. Na adolescência, teve a própria banca onde vendia carne.

Repetiu três vezes a oitava série e, aos 18, decidiu que teria destino diferente dos irmãos, que abandonaram os estudos no ensino fundamental.

Hoje, o imunologista Gustavo Cabral de Miranda, 38, com pós-doutorado na Universidade de Oxford, integra o time de pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, que, em conjunto com o InCor (Instituto do Coração), busca desenvolver uma vacina contra o coronavírus a partir de partículas semelhantes a vírus, as VLPs (virus-like particles).

Vinte anos separam o momento da virada na vida do doutor Miranda. “Sempre fui um menino esperto para negócios. Vendia geladinho, comprava galinhas, vendia, comprava um porco, depois já tinha um bezerro”, lembra.

Após sair de casa aos 15, foi trabalhar como ajudante em um açougue e passou a morar em Euclides da Cunha (BA). Um ano depois já tinha sua banca de carne e, em seguida, comprou a segunda banca, em Monte Santo (BA).

“Ia para a escola à noite, mas não conseguia concluir o ano letivo. Acordava às 3h para ir para o açougue. Trabalhava até as 15h, voltava para casa e tinha que fazer minha comida”.

Após repetir três vezes a oitava série, veio a frustração de não ver perspectiva na vida da forma como estava. “Desde criança, eu queria ser ‘gente grande’. Olhava para os ‘estudados’ e via que eles tinham uma vida boa, a vida que eu queria para mim. Decidi que ia estudar também”.

Vendeu as bancas de carne e a moto e voltou para a cidade natal, onde, com a ajuda da família, pode se dedicar somente aos estudos.

Aos 21, no fim do ensino médio, matriculou-se numa escola privada para se preparar para o vestibular. Prestou e passou em ciências biológicas na Universidade do Estado da Bahia, no campus de Senhor do Bonfim.

“Tinha residência universitária e foi para lá que eu fui. Comecei a trabalhar com saúde pública e meio ambiente, doenças parasitárias e comunidades quilombolas”.

Foi o primeiro da família a se graduar. Em seguida, fez mestrado em imunologia na Universidade Federal da Bahia, com foco em doenças parasitárias e nanotecnologia. O doutorado foi na USP, em São Paulo, em imunologia. Tinha bolsa de pesquisa e morava na residência universitária.

“Eu via o pessoal fazendo o doutorado sanduíche, indo para outros países e decidi que seguiria o mesmo caminho. Mas meu inglês era muito mediano. Fui então para o instituto de engenharia e nanotecnologia do Porto, em Portugal”. Nesse período, fez um curso de imersão de inglês na Irlanda. “Foi um mês que pareceu um ano”.

Ao terminar o doutorado na USP, foi aceito em um pós doutorado na Universidade de Oxford, Reino Unido. Ficou lá três anos e meio trabalhando com vacinas no Instituto Jenner, referência mundial e onde foi desenvolvida a “vacina de Oxford”, licenciada pela farmacêutica AstraZeneca.

Seu foco de pesquisa foram as VLPs. Essas partículas possuem características semelhantes às de um vírus e, por isso, são facilmente reconhecidas pelo sistema imunológico.

Porém, não têm material genético do agente infeccioso, o que impossibilita replicação. Por isso, são seguras para o desenvolvimento de vacinas.

“Com essa tecnologia, trabalhei com vacinas com VLPs aplicadas para malária, para o vírus da zika. Fui para a Suíça e continuei trabalhando com essa tecnologia. Tinha um ótimo salário, uma vida bacana, mas, pessoalmente, estava mal. Então, voltei ao Brasil”.

No final do ano passado, Miranda teve seu projeto sobre o uso das VLPs aplicadas em vacinas para o vírus da zika e da chicungunya aprovado pela Fapesp. Em março deste ano, com a pandemia de coronavírus, mudou o alvo para o agente infeccioso que já matou quase 200 mil no Brasil.

“Desde então, não parei nenhum dia. Sinto-me à vontade para criar, para produzir”.

Embora a tecnologia das VLPs ainda não esteja sendo aplicada em nenhuma vacina contra o coronavírus em estágio avançado, o pesquisador vê boas possibilidades para o futuro. “É bem promissora, mas não para agora”.

Da bancada do laboratório, Miranda se entusiasma com a resposta rápida que a ciência deu para o desenvolvimento de vacinas contra o coronavírus, mas, ao mesmo tempo, teme a pressão política em torno da imunização.

“Temos que ter muita cautela nesse momento. Se a gente, por pressão política, tirar a autonomia de instituições como a Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária], será um prejuízo gigantesco”.

Segundo ele, embora qualquer vacina aprovada seja segura e eficiente, é preciso cuidado ao levantar bandeiras para o uso em massa de vacinas apenas com resultados preliminares de estudos. “A fase 3 é muito importante, envolve milhares de pacientes”.

Miranda diz que seu temor é que, como o uso emergencial poderá imunizar bilhões de pessoas, se ocorrer algum problema de saúde pública envolvendo alguma das vacinas, será uma arma utilizada por movimentos antivacinas.

“Se perdermos a confiabilidade na produção de qualquer vacina, será um prejuízo histórico muito grande”.

Em 2021, além da pesquisa, Miranda lecionará no doutorado do departamento de biotecnologia da USP uma disciplina sobre o desenvolvimento de vacinas e de diagnóstico, usando nanotecnologia.

Sua história de vida serviu de inspiração para o irmão mais novo, Willian, 32. Seguindo os passos do pesquisador, ele fez graduação em geografia, mestrado e doutorado em geografia física na USA, e um “sanduíche” na Universidade Columbia (EUA).

“Ele fez uma baita carreira acadêmica. É o meu segundo maior orgulho. O primeiro é painho [Washington, 68] e mainha [Maria das Graças, 63]. Não vejo a hora de capinar com painho, só nós dois na roça”.

Claudia Collucci - Folhapress

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